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Dating : Living room

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Deitada no chão parecia que tudo, ao invés de parecer demasiadamente grande, estava como que em miniatura. Pensava no quanto tudo estava tão pequeno, e enquanto ficava ali não precisava se preocupar com nada. Procurava formigas com os olhos, na expectativa de que elas, ou outros insetos, subitamente tivessem trocado de lugar em tamanho com os seres humanos (o que não seria, àquela altura das coisas, nada de extraordinário) e por acaso começasse a conversar com ela, os olhos escuros refletindo seu rosto atormentado, a expressão dos insetos transmitindo preocupação e um pouco de perplexidade. Mas sentou-se, sentindo-se curiosamente observada pelo vazio, quando a campainha tocou e ela seguiu pelo corredor até à sala como se caminhasse pelo vale da sombra da morte (ela pensava consigo mesma sorrindo preocupada) e abriu a porta para ele.

Vamos, hoje o dia tá bom e tem filme legal pra gente ver.

Ela apenas fez um aceno com a cabeça, dizendo que sim, olhando bem fundo nos olhos dele, que estavam bem longe de serem parecidos aos de uma formiga, mas eram vivos e ela gostava daquilo. Só sentia a cabeça girar mais do que o normal — talvez fosse o ar mais pesado do que o de costume (ela vinha evitando sair de casa desde que havia abandonado a faculdade antes de presenciar o fechamento ordenado pelas autoridades), talvez prenúncios de chuvas perigosas -, imaginou que poderia ser uma febre leve, uma gripe se aproximando.

O que tá havendo? Você tá bem?

Sorriu em resposta a ele:

Estou bem, sim. Só estou reparando… a altura dos prédios.

Ele olhou ao redor, como quem não compreendesse o que ela dizia, mas logo viu algo no alto de um dos prédios, uma figura minúscula que, no entanto, parecia impávida de onde estava. Então segurou suas mãos, logo em frente ao cinema e falou, olhando nos olhos dela:

Vê só: acabou. Desde que você saiu da universidade, acabou, ninguém mais vai te encher.

Baixou a cabeça, como dando a entender que estava calma e sorriu mais uma vez, colocando a pulseira para pagar a entrada, o cinema que meio a custo, meio dependendo da indiferença, projetava filmes antigos ou experimentos que, embora não estivessem formalmente proibidos, caso chegassem ao conhecimento das chamadas agências de repúdio. Nesses conselhos, formados por indivíduos que gostavam de cooperar com as autoridades, tais filmes geralmente eram censurados. Mas como era muito barulho por nada e os policiais evidentemente tinham mais o que fazer, quase nunca acontecia nada. As pessoas ainda olhavam umas paras as outras com imensa desconfiança e também com certo enfado para o que era projetado, pois não era novidade para ninguém que alguns filmes patrocinados por verba oficial, de conteúdo inteiramente insípido, ocupavam duas horas da vida de quem tentava ver algo interessante.

Aquele não, uma produção estrangeira antiga.

Um tal de Fabre e seus companheiros eram levados em uma carroça para uma praça enfumaçada entre uma multidão entre atônita e agressiva, acossada por soldados que riam e outros que bocejavam. Fabre estremecia vendo algumas mãos tentando passar pelos fuzis cruzados, enquanto se defendia de ovos, pedras, legumes podres. Do alto da carroça sentia-se um gigante hostilizado por anões: um gigante sem forças. Mais adiante dois amigos seus também tentavam se defender daquelas figuras que pareciam uma hora minúsculas demais, mas com braços que se esticavam como elásticos, ou garras, alicates que tentavam alcançá-los. Eles também pareciam enormes, principalmente o mais velho, que gritava esbaforido contra a multidão. Ora ele se intimidava com o vozeirão daquele senhor meio obeso, ora o xingava, mas quase respeitosamente. Um cheiro forte de madeira de tochas queimadas entrava pelo nariz de Fabre, que também poderia jurar que, em meio àquela gritaria, alguém estava assando pão para vender antes do cair da noite.

Chegaram ao centro da praça, onde o cadafalso se esparramava já ensanguentado e ele também parecia enorme, uma espécie de escada de Jacó, Fabre poderia jurar poder ver pequenos vultos por trás das nuvens e que, se ele resolvesse gritar também, seria ouvido, talvez resgatado. Mas ali ele já não era mais o gigante, era também um anão, ou melhor, um ser reduzido, que via os dois amigos mais adiante tentando se abraçar e os soldados os separando subitamente, pois o mais velho, que continuava a vociferar agora para as janelas, mirando uma delas que Fabre não conseguiu identificar, ia ser executado.

Fabre e os que estavam atrás dele só poderiam estremecer, se urinar, evacuar o medo em forma de merda e lágrimas miúdas, que mal saíam, talvez com medo. A cabeça de seu amigo caiu na cesta como algo largado desajeitadamente, que mal pôde saciar a curiosidade mórbida da turba que se divertia com a maneira como o jovem que chorava a morte do amigo subia ao cadafalso e, em verdadeiro choque nervoso, tinha sua cabeça cortada.

O guarda atendeu ao chamado do carrasco e puxou Fabre pelo braço, ficando tremendamente irritado quando este lhe vomitou a manga da casaca, praticamente o sacudindo num traço de bosta, deixado pelos outros que foram antes dele, ao qual Fabre logo deixou a sua própria contribuição. Alguém leu, por pura praxe ou encenação (Fabre pensou nesta segunda opção, por sua experiência podia sentir cada acento mais floreado na voz de quem se fazia de arauto), os motivos da condenação e naquele momento passou pela cabeça de Fabre uma sensação de desalento. E sentiu o cadafalso que tremia riscado pelas baionetas dos soldados, pelas mãos sujas de cento e cinquenta populares que, passando pelas barreiras, se aboletavam embaixo do estrado de madeira, os olhos enormes encarando a tudo e a todos, zombarias que, lá de baixo, alcançavam os ouvidos de Fabre.

Com a cabeça no local exato, sentindo aquele cheiro frio de sangue, o acre do ar empesteado de fumaça, o calor da urina escorrendo por suas pernas, Fabre olhou para cima, para baixo, tudo pareceu grande em demasia, e sentia que sua cabeça iria diminuir para que não caísse junto àquelas carrancas que o encaravam da cesta. Com bocarras enormes, prontas a engolir o mundo acima delas. Fabre por um momento lembrou que ao subir no cadafalso o imaginou, em um átimo, como uma imensa sala de estar, maior que o mundo e também do tamanho de um átomo. O mundo não passava daquilo: uma sala de estar onde ficavam todos os executores e executados. E então sentiu um frio percorrer a espinha enquanto seus olhos giravam pela quadratura do céu, vendo de cabeça para baixo a multidão a gritar, os amigos presos naquela cesta, meros cinquenta centímetros que se transformaram em centenas de metros, ele vendo o resto de seu corpo gigante se debatendo enquanto milhares de formigas se debruçavam sobre a soleira da porta de uma sala de estar.

Ele deixou a sala divertido, ela pensativa demais. As pessoas que saíam do cinema buscavam se proteger da poeira da tarde, sempre olhando de viés, construindo aquela massa pesada da qual se faz o silêncio, que parecia se misturar ao pó que caía do céu todo dia. O medo dela era de que qualquer viatura abordasse os dois e sequer fizesse perguntas, simplesmente os carregasse para qualquer lugar, como da vez em que ela nem o conhecia e ainda acreditava que pudesse fazer algo de relevante. Lembrava que era como se tivesse sido carregada em uma carroça, não para uma praça pública, mas para uma sala onde se projetavam sombras gigantes e disformes nas paredes e cada sombra tinha a tangibilidade do terrível. E era um terrível diferente daquilo que havia conhecido nas aulas e que parecia irreal. Como a paisagem diminuta de uma planície ao longe aos olhos de quem está no alto de um morro. Como uma formiga percebendo o movimentar dos pés das pessoas e apenas desvia indiferente.

Chegando em casa, pediu para ele não subir. Ele tentou argumentar, mas como ela olhou firme, desistiu. Certificou-se de que estava segura quando a porta do prédio fechou e então seguiu seu caminho. Achou que talvez sua atitude ao ver o filme, de sorrir enquanto ela remexia agoniada no assento, a incomodou. Mas ele gostava de coisas antigas e conhecia a história, então havia se interessado pela maneira de como o diretor a tinha narrado. Lembrou da irmã e do quanto ela gostaria de discutir aquilo com ele enquanto olhavam a rua pela janela, aquelas tardes de luzes cinzentas, de nuvens que expulsavam pó. Sua irmã também lhe perguntava sobre o que ele pensava no caminho de volta para casa e ele riu pensando que não saberia responder direito. Talvez dissesse que lembrava dos tempos em que ainda acreditava que todos tinham a força necessária para colocar o caos em mais caos até ele parecer minimamente ordenado. E depois o que restou de tudo foram as coisas pequenas que tanto acalentavam o coração dele e que sua amiga não entendia, pois acreditava que ele havia entregue os pontos todos, quando na verdade, e ele dizia à sua irmã, é que todos os pontos haviam sido tomados e entregaram em troca uma vida toda de simulacros.Ou como um poema antigo que ele sempre recordava, uma vida de escritor de sala de jantar.

Ia perto de sua rua quando encostaram do lado com um veículo. Ele apenas sorriu. A moça, com o tablet na mão, simplesmente abriu a porta. Ele entrou. Pensou em dizer à irmã que pensava nela, mas também pensou na amiga. Nessa hora só suspirou fundo. Um rapaz ao seu lado ofereceu umas balas. A moça perguntou como ele estava. Se tinha medo. Ele não soube responder. Olhou os prédios na rua, a noite caindo quieta e o céu brilhando esquisito, e imaginou cada grão de poeira que dava para perceber quando passavam por algum fragmento de luz. Pensou que pudesse ser criaturas tentando invadir o mundo a cada dia, que até se aglomeravam no chão e não sabiam o que fazer até serem aspiradas, para no outro dia recomeçar, independentemente do medo do fracasso e do desamparo ao se perceberem tantas, mas serem rapidamente retiradas do chão com a naturalidade protocolar.

Em uma esquina já bem longe do centro, o carro parou e a moça, olhando para o meio fio, falou, como para si mesma:

As formigas não cansam de trabalhar.

Ele sorriu e deixou escapar.

Nem os gigantes.

Ela deixou a bolsa e o moletom largados no sofá e antes de fechar as janelas ficou por um tempo olhando os prédios enormes e sentiu-se muito cansada, sem saber definir o estranhamento que tomou conta de si. Achou que deveria ter deixado ele subir e ficar os dois a observar o mundo do trigésimo andar. Como se as janelas fossem seus próprios olhos, já que todos já eram estáticos como todos os prédios. Pegou um pano, tentou limpar um pouco daquela poeira que já ficava espessa, mas desistiu. Ouviu o aviso que percorria as ruas àquela hora, meio escarnecedor, e suspirou fundo. Deitou no chão como se ele fosse um cadafalso e ficou procurando uma trilha de formigas no chão, talvez para se sentir gigante ou quem sabe se juntar a elas, em sua melancolia laboriosa, largadas no caminho.

Ao longe, vozes sorridentes pareciam desmentir o que o aviso lá de fora dizia. Pareciam povoar sua sala de estar, e isso a incomodou. Levantou-se e foi até à janela.

Tudo quieto.

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