h2>Dating : Um pesadelo comum
“Lucas, vamos logo com isso! Você não tá vendo que as distorções estão saindo do controle!”
“Por certo que sim, Sabrina. Mas não é prudente avançarmos sem avaliar os riscos.”
“Tá bom, tá bom. Mas como vamos ver o que está acontecendo lá no bloco E daqui?”
“Que tal uma luneta?”
O rapaz de traços Guarani abriu um livro de capa dura, conferiu se ninguém estava olhando e, em um movimento rápido sacou de seu interior o objeto. Sabrina, de pé e em uma postura ereta e confiante, não se surpreendeu com aquilo e apontou para o prédio de três andares do Colégio Estações.
“Vamos, Lucas! Me diga o que tem lá antes que desapareça!”
O garoto apontou o instrumento de corpo metálico levemente desgastado para uma janela estranhamente envolvida por sombras parecidas com tentáculos. Ao aproximar a luneta de sua face ele sentiu um forte cheiro de maresia, chegando até mesmo a enjoar.
“Não sei ao certo. Pode ser algo que vem do interior do prédio.”
“Mesmo, Capitão Óbvio? Conta uma novidade!”
“Calma, Sabrina! Não precisa ser rude assim!”, disse uma voz feminina que se uniu aos dois naquele intervalo do turno da manhã da escola.
“Mas Anne, você ouviu o que ele disse? Odeio quando me tratam como uma idiota!”
“Você não se ateve aos detalhes, Sabrina. Disse que poderia estar vindo do interior do prédio. Mas não deste prédio, mas do outro prédio. Ou melhor, deste prédio, mas do outro lado.”
Sabrina finalmente reconheceu a linha de raciocínio de Lucas e, após o rapaz devolver a luneta ao interior do livro que lia entregou a ele e a garota que se uniu ao grupo balas de menta.
“Obrigado, Sabrina.”
“Ah, eu não quero. Essa bala arde demais. Não tem alguma mais doce?”
“Comigo não, Anne. Deve ter lá na sala do grêmio. Mas diga, Lucas. Alem da ponte para o mundo dos pesadelos, você percebeu algo além?”
“Não cheguei a notar nada além dessa massa tentacular saindo do prédio. Aliás, ela parecia vazar de lá de dentro. Estranho demais…”
“Eu ouvi um gemido, algo como uma súplica.”
“Quando, Anne?”
“Agorinha, bem na hora que o Lucas estava olhando pra lá. Dava para sentir algo como um pedido de socorro.” Anne dizia enquanto removia seu fone da orelha direita, o qual ainda emitia um brilho translúcido arroxeado.
“Ok, então a coisa nos viu, sabe de nossa presença.”
“Parece que sim. Mas isso é uma situação limite. Né, Sabrina?”
“Sim. Se as distorções estão graves a este ponto e as vítimas dos pesadelos já perdem o controle durante o dia, qualquer coisa pode acontecer.”
A conversa foi interrompida pelo toque da sirene que encerra os intervalos. Os três se entreolharam em silêncio, até que a menina de cabelos curtos se encolheu.
“E agora, gente? Eu tenho teste de geografia. Não posso bombar porque não entreguei a pesquisa na semana passada.”
“Não se preocupe, Anne. Nós assumimos por aqui. Você já ajudou muito.”
“Mas… mas… Eu quero participar também, Sabrina!”
“Preste atenção, garota. Você tem compromissos, certo? Então foque neles ou você não dá atenção pra nada. Quer ajudar? Então, no caminho da tua sala, dá um toque no Felipe e fala que eu e Lucas esperamos ele nas escadas do bloco E.”
“Ok. Pode deixar, Sabrina!”
“E vê se tira uma nota boa no teste. Faça valer a pena!”
Anne se afastava, misturando-se aos demais alunos no final do intervalo. Era possível ver ela atravessando o bolo de gente para chegar à quadra, onde Felipe tinha terminado de converter um arremesso de três pontos, dando fim a mais uma partida de basquete. Era difícil vencer aquele jovem de dreads azuis em dias inspirados como este.
“Podem anotar. Quatro semanas invicto nos jogos dos intervalos. É ou não é um novo recorde? Acho que vocês estão me devendo um lanche lá na Gusmão Lanches!”
“Ei, Felipe! Sabrina e Lucas te esperam lá na escada do bloco E. Assunto para os sonhadores, entendeu?”
“Eita, mas justo agora? Não rola de ser mais tarde não?”
“Não, cara. É sério.”
“Beleza. Então partiu!”
Já nas escadas do bloco E, Sabrina e Lucas aguardavam ansiosos por Felipe enquanto se apertavam contra os corrimãos. O fluxo de alunos era intenso, tal qual uma corredeira. Contudo, enquanto Sabrina era evitada por respeito, ou até mesmo medo de ouvir uma bronca da presidenta do grêmio estudantil, Lucas era alvo de encontrões a todo momento. Alguns, sem dúvidas, de propósito.
“Ai!”
“A culpa é sua, está no meio do caminho!”
Lucas já havia previsto a confusão que seria marcar o encontro na escada, mas não queria contrariar Sabrina. Sua amiga já estava nervosa e seria mais um ingrediente para ela explodir.
Assim que ele terminou de chupar a bala, viu Felipe se aproximar, ainda ensopado de suor. Como em um estalo, Lucas lembrou-se que também estava com seu horário ocupado. E agora, ele teria coragem para se separar de seus amigos sonhadores, sabendo que ouviria um sermão de Sabrina? Ou ela o apoiaria como fizera com Anne?
“Falaí, galera. Qual é o galho?”
“Felipe, a gente vai atravessar agora. Os pesadelos estão invadindo a realidade. Pra isso virar uma tragédia é um pulo.”
“Beleza, chefa. Tô meio cansado mesmo. Esse cochilo vai cair bem agora. Não queria assistir a aula de literatura mesmo.”
“Justo literatura, Felipe?”, pouco antes de levar outra trombada maldosa, Lucas foi protegido por Felipe, que jogou seu ombro na direção do valentão, quase o derrubando.
“Qual foi, cara?”, ele encarou o Felipe quase rolando a escada.
“Qual foi o quê? Ou tá preparado pro choque ou não tá. E não vem com papo mole agora porque enquanto você tá indo eu já estou voltando. Falei?”, Felipe se vira para Lucas e, enquanto o cara sai resmungando ele apertou as bochechas de seu amigo dizendo: “Você precis aprender a se defender, Luquinhas. Eu não estarei aqui o tempo todo.”
“Falando em não estar o tempo todo, eu não poderei os acompanhar.”
“Mas é o quê?”, a testa de Sabrina ganhou uma ruga de raiva.
“Ah, vai dizer que ficou chateado porque eu protegi o príncipe?”, Felipe deu uma risada enquanto Lucas afastou as mãos do rapaz que buscavam novamente suas bochecas.
“Nada disso. Lembrei há pouco que tenho uma tarefa no clube de literatura. Preciso agitar o periódico de contos para postar nas redes do clube.”
“E precisa se agora?”
“Sim. Só tenho cinquenta minutos disponíveis agora, depois do intervalo. Tanto que entreguei o estudo dirigido de sociologia à professora no início do dia para poder trabalhar no laboratório de informática agora.”
“Tudo bem, tudo bem. Vai lá, Lucas. Ainda bem que somos quatro.”
Lucas se despediu depois que os alunos se dispersaram. Contudo, Felipe não perderia a oportunidade de o encabular. Bastou se virar para seguir ao corredor do bloco D para que Felipe desse um apertão de mão cheia em sua bunda. Lucas ficou vermelho de vergonha até o fim do dia, e não conseguiu olhar nos olhos de Felipe por uma semana.
Sabrina abriu a sala do grêmio, que estava arrumadíssimo e organizadíssimo. Apesar de ser algo de costume em sua gestão, Felipe sempre se assustava com a limpeza do lugar.
“Chefa, isso aqui nem dá vontade de dormir. Claro demais, branco demais. É uma mistura de escritório de firma chique com hospital, Sabrina. Cadê o conforto, a maciez, o escurinho?”, Felipe fazia movimentos felinos engraçados enquanto falava.
“Para de graça, Felipe. Você cansou de dormir naquele sofazinho.”, Sabrina fechou a janela e a cortina da sala e inclinou sua cabeça ao sentar-se numa poltrona.
Enquanto isso Felipe se acomodou no sofá. Em pouco tempo ambos já cochilavam, demonstrando que sabiam o que estavam fazendo, e que não era a primeira vez que faziam isto.
“Sabrina, você tem certeza que é nesta direção?”, Felipe, trajado de herói com roupas colantes azuis e amarelas, anda cautelosamente pelos corredores de uma escola num mundo alternativo, sem cores e distorcido.
“Sim, Felipe. Olha ali. Já dá pra ver uma espécie de vórtex.”
O silêncio e a ausência de alunos era assustadoras. Por terem acabado de passar pelas escadas lotadas e cheias de vida no mundo real, testemunhar a desolação no mundo dos pesadelos era no mínimo desconfortável.
“Ok, chefa. É só a porta do quartinho de material de limpeza.”
“Basta derrubá-la pra ver o que ela esconde!”, Sabrina pôs abaixo a porta após um único golpe dado com uma marreta de madeira enorme que combinava com seu vestido roxo.
“Não, não me matem! Não fiz nada. Só estava aqui quietinho.”
“Seu Tiago, é o senhor?”
“Felipe?”
Tiago é um dos profissionais da limpeza do Colégio Estações. Vizinho de Felipe, é conhecido por seu bom humor. Mas agora ele parecia estranho. Além de não ter olhos, sua pele parecia escorrer, derreter pelo seu corpo. Estava tomado pela influência dos pesadelos.
“Diga o que está acontecendo, seu Tiago. Fique tranquilo porque você pode confiar na gente. A minha pessoa você já conhece, e Sabrina é a pessoa mais responsável do Colégio, mais até do que a diretora Francine!”, Felipe ficou aliviado com a sorte de não ter a companhia de Anne e Lucas, já que se lembra bem do quão desconfiado que Tiago é.
“Ah, meu filho. Eu não quero mais saber de nada. Dorinha, minha esposa, ela está me traindo! Eu vou fazer uma loucura um dia desses!”
“Não vai não, seu Tiago. E a gente está aqui justamente por isso.”
“Vocês sabem do ocorrido com Dora?”
“Não, mas a gente não vai permitir você fazer nada absurdo. Ok? Aliás, o que ela fez? Quais as suas provas? Você não está sofrendo por suposições, né? Chegou a falar com ela? A que atribui a traição? Seu relacionamento estava indo bem?”
Pronto, quando Sabrina entra no modo sem paciência dispara um monte de perguntas. E cada questão que Sabrina fez foi restituindo a vida ao corpo decrépito de Tiago. A certeza que tinha se diluia enquanto as dúvidas restituiam sua razão. Sabrina sabia conduzir as coisas logicamente.
Não tardou para os dois jovens ouvirem de Tiago que fofocas diziam que sua esposa tinha outro sem qualquer evidência disso. Dora fazia um curso noturno e apenas por chegar mais tarde a boataria crescia. E Tiago acreditava naquilo.
“Pronto. Pode sair desse armário de material de limpeza. E mais, promete pra gente que vai falar com ela hoje ainda?”
“Combinado, Felipe. Combinado. Hoje converso com Dorinha.”
E então, poucos minutos depois ambos acordaram. Daria tempo de entrar nas aulas ainda, algo que Sabrina prontamente notou e se apressou em fechar a sala do grêmio, algo que Felipe não gostou nem um pouco.
“Deixa eu ficar aqui, Sabrina…”
“Você sabe que não. Vamos.”
“Ok… Mas que caso sem graça, né? Nem teve emoção. Historinha mequetrefe.”
“Pelo contrário, Felipe. São histórias assim, movidas a boatos e rancores que geram violência doméstica, feminicídios. Histórias comuns, de silêncios, raivas e agressões que não são contadas. Nós agimos bem, bloqueamos a espiral de ressentimentos, mas temos de ficar vigilantes. É sempre melhor prevenir a remediar. Sobretudo porque não há remedios para todas as dores.”